Por Mauro Rebelo

Projeto Mexilhão Dourado: Quebrando Paradigmas

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Recentemente fui aos reservatórios de Jupiá e Ilha Solteira, no Rio Paraná, Mato Grosso do Sul, para visitar a hidrelétrica de Jupiá e a aquicultura Aguaruga. 

As hidrelétricas e aquiculturas são os dois principais setores com danos econômicos diretos causados pelo mexilhão dourado.

Ao olharmos no mapa, a aquicultura fica em uma pequena enseada de um pequeno braço do reservatório de Ilha Solteira, que tem mais de 1000 km² de área. Mas lá, quando olhávamos ao redor, a sensação era de imensidão. As distâncias e a quantidade de água eram enormes!

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 Rio Paraná, Mato Grosso do Sul (Mauro Rebelo, 2022)

Isso me fez pensar sobre o desafio do controle do mexilhão dourado.

Nosso objetivo não é apenas controlar o mexilhão dentro das usinas e nos cascos dos navios, o que já seria um desafio de grandes dimensões, mas controlar a espécie no ambiente. E esse ambiente é enorme.

Dentro do laboratório, trabalhando com edições de genes invisíveis em volumes minúsculos, podemos perder de vista o volume colossal dos reservatórios de hidrelétricas no Brasil.

E o mexilhão está lá… em cada litro de água.

Como podemos almejar tratar cada litro de água de cada reservatório brasileiro? É, no mínimo, muita ousadia. Seria loucura?

Mexilhões adultos não são onipresentes

Ainda que o mexilhão esteja, potencialmente, em cada litro de água, não está aderido em todos os lugares. Na verdade, se andamos pelas margens do reservatório na praia da aquicultura, não vemos mexilhões. Eles não estão grudados nas pedras dos rios, nos troncos das árvores, nem nos cascos das embarcações; mas preenchem cada cm² dos tanques rede.

Isso me sugere que, ainda que o mexilhão possa se aderir em qualquer lugar, ele tem preferência por substratos artificiais*.

Será que eu poderia testar essa hipótese? Na verdade, ela já estava sendo testada pelo nosso projeto de pesquisa.

O time da Hubz, co-executora do projeto do controle biológico do mexilhão dourado, liderado por Raquel Figueira, havia medido mexilhões ao longo de 3 reservatórios com quadrantes, sonar e imagem, desenvolvendo um método automático e escalonável de medição. Eles observaram justamente que a distribuição dos mexilhões não era nem uniforme e nem aleatória, era agregada.

Não é incomum para um organismo ter uma distribuição agregada em função de algum fator biológico ou ambiental.

O que o time da Raquel descobriu é que o fator que parecia agregar os mexilhões eram os substratos artificiais: as barragens, os canais, as construções abandonadas, os naufrágios e as aquiculturas.

Um desses locais é o canal de Pereira Barreto, no estado de São Paulo. Ele é considerado o maior canal artificial da América do Sul e o quinto maior do mundo. Ele conecta o reservatório de Ilha Solteira ao reservatório de Três Irmãos com o objetivo de regular o volume dos dois reservatórios para maximizar a produção de energia. 

O canal também tem um grande volume de embarcações, já que serve de escoamento para grande parte da produção de soja do Mato Grosso, em direção ao porto de Santos e é um grande berçário e viveiro de mexilhões.

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O impacto desse viveiro não é negligenciável. Após 5 meses de reversão no fluxo de água de Três Irmãos para Ilha Solteira (geralmente é o oposto), a infestação de mexilhões no reservatório de Três irmãos diminuiu. O canal de Pereira Barreto virou um grande exportador de larvas.

A evidência, ainda que por enquanto anedótica, é reforçada por modelos matemáticos e referências na literatura. Nosso próximo passo é um estudo controlado.

Não dá para imaginar que com as aquiculturas seja diferente. Com área protegida, substrato artificial e duas refeições por dia, eles são um ambiente perfeito para os mexilhões se assentarem e dispersarem.

Essa constatação foi um pouco desconfortável, porque transformava uma das tradicionais vítimas do mexilhão, as aquiculturas, em perpetradores.

Mas as observações e os dados eram robustos: não tem mexilhões em todas as superfícies e menos ainda onde não temos aquicultura.

Derrubando paradigmas

Não encontramos mexilhões em todas as superfícies possíveis, mas encontramos mexilhões mais em algumas do que em outras. Essa constatação derrubava um paradigma importante da infestação: que o mexilhão se adere a qualquer superfície.

Resolvi então revisitar outras premissas

A primeira, que o mexilhão não tem competidores naturais. Isso porque, durante as contagens de mexilhões, o time de Raquel tirou diversas fotos de esponjas cobrindo mexilhões e asfixiando eles. Já tínhamos relatado como esponjas também atacam bancos instalados de coral sol, uma outra espécie invasora marinha. Fiquei com a impressão que, se formos buscar, encontraremos mais e mais exemplos de competidores.

Apresentação de Humberto no 23rd congresso internacional de zoologia falando sobre a possibilidade de esponjas controlarem as populações de mexilhão dourado. Fotos a partir de 7’:28”

A segunda, que o mexilhão não tem predadores. Temos observações para contestar essa premissa também. Aliás, há anos! Peixes, como o armado, estão predando mexilhões, principalmente os mexilhões mais jovens, com a concha menos calcificada. Isso não significa que eles sejam a dieta ideal, mas tampouco que não sejam recurso alimentar para ninguém.

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Fotos: Rodrigo Beltz

A terceira, que o mexilhão altera a composição da água. Ainda que isso seja possível em lagos e reservatórios menores, não acredito que isso seja possível em reservatórios da magnitude do de Ilha Solteira. E de fato, não encontramos elementos para comprovar esse impacto na qualidade da água em nenhum dos reservatórios que estudamos.

Finalmente, a quarta premissa: os mexilhões resistem a dissecação por longos períodos de tempo. As observações sugerem que a exposição ao ar e ao sol seja, na verdade, a principal ferramenta de controle do mexilhão. As aquiculturas expõem os tanques infestados ao sol. A partir de 4 dias os mexilhões mortos começam a se soltar dos tanques da rede.

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Mexilhões secando em tanque rede. Foto: Mauro Rebelo

Novas premissas

Gerei novas premissas para o mexilhão que devemos testar:

  • O mexilhão vive apenas em grandes aglomerados e deve precisar de algum elemento que apenas o aglomerado pode prover. Não basta haver um substrato: é preciso que sejam aglomerados. É possível que o mexilhão precise de elementos químicos fornecidos por outros mexilhões, pelo aglomerado, ou por outras espécies da fauna acompanhante. Pode ser proteção também, mas acho menos provável.
  • As populações de mexilhões são reguladas pela disponibilidade de alimento. Nossa principal evidência para isso vem do laboratório. A dificuldade para manter os mexilhões em laboratório é grande principalmente por causa da alimentação. Os mexilhões são insaciáveis e é mais fácil estragar a água do aquário com alimentação excessiva do que saciá-los.
  • As populações de mexilhões são controladas pela exposição ao sol e ao ar. Além da evidência massiva das aquiculturas, o fenômeno da decoada, a queda no oxigênio nos rios pela redução sazonal do volume de água, que há anos é relatado como a principal barreira para expansão do mexilhão dourado para a Amazônia.
  • Os mexilhões adultos parecem continuar muito resistentes a substâncias químicas na água
  • As aquiculturas são multiplicadores de mexilhões.
  • Os canais artificiais são berçários e viveiros de mexilhões.
  • As barragens reduzem o número de mexilhões a jusante. Essa última também baseada nas observações do time da Raquel, que a jusante de qualquer barragem, a contagem é menor. Por mais que larvas de mexilhões passem pelas grades e se aderem às paredes das tubulações, a energia cinética das turbinas e dos vertedouros parecem não fazer bem a elas.

 

*Substratos artificiais são simuladores de diferentes tipos de habitats utilizados para amostragem