Um ensaio baseado no artigo Sarewitz, Daniel 2016 Saving Science The New Atlantis https://www.thenewatlantis.com/publications/saving-science
Durante a pandemia de COVID19, mais uma vez, a ciência trouxe a solução para uma crise sanitária, humanitária, social e econômica. Os cientistas, distribuídos em universidades, institutos de pesquisa, startups, grandes e pequenas empresas, aprimoraram métodos diagnósticos, testaram medicamentos, desenvolveram, produziram e testaram as vacinas que em breve acabarão com o estado de pandemia em tempo recorde.
Com bilhões de doses aplicadas, podemos dizer que a sociedade se impressionou com o resultado do esforço de desenvolvimento da vacina. Parte da sociedade se pergunta, legitimamente, porque para tantos outros problemas, muitos mais antigos, bem documentados e menos complexos, a ciência não consegue oferecer solução?
Modelos de financiamento científico
Olhando para o avanço recente da ciência, a vacina de COVID19 parece mais uma exceção do que a regra. John Horgan, no livro ‘O fim da ciência’, de 1999, sugere que a atividade científica obedece uma curva de retornos negativos e discute a ideia dos limites do conhecimento. Mas a razão para tão poucas descobertas poderia ser outra: o próprio modelo de financiamento da ciência, que não incentiva a resolução de problemas.
A ideia foi inicialmente apresentada por Donald Stokes no livro ‘O quadrante Pasteur’ de 1997. Mais de 20 anos depois, pouco ou nada mudou na forma como o financiamento da ciência é feito. Continuamos seguindo o modelo proposto por Vannevar Bush em 1945 para a criação da Fundação Nacional de Ciência (NSF) dos Estados Unidos, que serviu de modelo para a formação das agências de fomento em praticamente todo mundo. Essa metodologia é tão arraigada que nem mesmo as crescentes evidências da sua inadequação, como as relatadas no artigo ‘Por que a maior parte das descobertas científicas é falsa’, de John Ioannidis de 2005, foram suficientes para gerar mudanças.
O artigo ‘Salvando a ciência’ de Daniel Sarewitz publicado em 2016 faz, novamente, uma crítica contundente ao modelo desenvolvido por Vannevar Bush. Porém, melhor do que outros autores, Sarewitz relata um modelo alternativo de financiamento de ciência, que coexistiu com o modelo da NSF. Não pela sua anterioridade, mas pela eficácia na obtenção de resultados e eficiência na gestão de recursos. Nós analisamos o artigo e destacamos lições que podemos aplicar na Bio Bureau e no Brasil para a resolução de problemas econômicos e sociais com base na ciência e no desenvolvimento tecnológico.
A quem a ciência presta contas?
O artigo de Daniel Sarewitz na revista New Atlantis começa de forma contundente:
Science, pride of modernity, our one source of objective knowledge, is in deep trouble. Stoked by fifty years of growing public investments, scientists are more productive than ever, pouring out millions of articles in thousands of journals covering an ever-expanding array of fields and phenomena. But much of this supposed knowledge is turning out to be contestable, unreliable, unusable, or flat-out wrong. From metastatic cancer to climate change to growth economics to dietary standards, science that is supposed to yield clarity and solutions is in many instances leading instead to contradiction, controversy, and confusion.
Sarewitz resume o problema a uma premissa destacada do famoso relatório ‘Science: the endless frontier’ publicado pelo ilustre Vannevar Bush em 1945:
Scientific progress on a broad front results from the free play of free intellects, working on subjects of their own choice, in the manner dictated by their curiosity for exploration of the unknown.
A nobreza da premissa e a reputação do seu autor a tornaram inquestionável. Bush era um engenheiro com uma visão clara da importância da ciência para o bem estar da sociedade e a segurança nacional. Foi o primeiro conselheiro científico da presidência, coordenou esforços de mais de 6000 cientistas durante o conflito e iniciou o projeto Manhattan, que desenvolveu e construiu as bombas atômicas, garantindo que ele recebesse prioridade absoluta do governo.
Eu, como muitos, fui profundamente impactado quando li pela primeira vez o seu artigo “As We May Think” que descreve a máquina memex e os saltos associativos com os quais aprendemos que influenciaram a criação dos hipertextos.
E sua premissa soou como enunciado do senso comum.
As the war drew to a close, Bush envisioned transitioning American science to a new era of peace […] pursuing “research in the purest realms of science” scientists would build the foundation for “new products and new processes” to deliver health, full employment, and military security to the nation.
No entanto, na ânsia de criar escapar do controle restritivo dos militares, Bush criou um sistema no qual os cientistas não tinham que prestar contas a ninguém, a não ser a si mesmos:
Politicians delivered taxpayer funding to scientists, but only scientists could evaluate the research they were doing. Outside efforts to guide the course of science would only interfere with its free and unpredictable advance.
A história da ciência é repleta de descobertas importantíssimas, como os raios x e a penicilina, que reforçam esse papel fundamental da serendipidade.
E, a primeira vista, o investimento em ciência parece ter remunerado amplamente a sociedade:
When Bush wrote his report, nothing made by humans was orbiting the earth; software didn’t exist; smallpox still did.
Mais recentemente, podemos adicionar a essa lista a descoberta das ondas gravitacionais, o genoma humano e a internet.
Mas Sarewitz sugere uma outra explicação. Menos romântica, porém mais robusta, bem documentada e objetiva: a indução da descoberta científica pelas demandas tecnológicas do Departamento de Defesa (DoD) dos EUA.
Quando Vannevar Bush criou a NSF nos moldes de intelectos livres explorando o desconhecido perseguindo a sua curiosidade, o DoD não deixou de financiar e incentivar a ciência à seu modo, que pode ser definido como o ‘complexo militar-industrial’. Sua lógica era que o custo era menos importante que o objetivo: garantir que a tecnologia militar americana fosse a melhor do mundo.
Muitas vezes o DoD não fomentava a inovação através de financiamento a fundo perdido, como fazem as fundações e agências de fomento como a NSF, mas sim como cliente, um cliente beta, disposto a pagar muito por protótipos e Mínimos Produtos Viáveis (MVP) que tinham funcionalidade limitada e baixa eficiência. Isso protegia as inovações ousadas que os militares necessitavam do racional do ‘mercado’ que teria condenado a maior parte dos projetos radicais e super caros:
For example, the first digital computer—built in the mid-1940s to calculate the trajectories of artillery shells and used to design the first hydrogen bomb—cost about $500,000 (around $4.7 million today), operated billions of times more slowly than modern computers, took up the space of a small bus, and had no immediate commercial application. […] The earliest jet engines, back in the 1940s, needed to be overhauled about every hundred hours and were forty-five times less fuel-efficient than piston engines. […] military planners knew that jet power promised combat performance greatly superior to planes powered by piston engines. For decades the Air Force and Navy funded research and development in the aircraft industry to continually drive improvement of jet engines. [And] of the thirteen areas of technological advance that were essential to the development of the iPhone, eleven—including the microprocessor, GPS, and the Internet—can be traced back to vital military investments in research and technological development.
Para ele, os americanos, mas não só eles, idolatram os cientistas ‘cabeça nas nuvens’ estereótipo de Einstein e os empreendedores de Garagem como Steve Jobs ou Bill Gates, mas a verdade inconveniente é que muita da tecnologia de hoje existe por causa do investimento e do direcionamento da ciência pelos militares:
Science has been important for technological development, of course. Scientists have discovered and probed phenomena that turned out to have enormously broad technological applications. But the miracles of modernity in the above list came not from “the free play of free intellects,” but from the leashing of scientific creativity to the technological needs of the U.S. Department of Defense (DOD).
No Brasil, o complexo industrial da saúde, proposto por Carlos Gadelha da Fiocruz na gestão de José Gomes Temporão no Ministério da Saúde, foi um modelo parecido. Com as Parcerias de Desenvolvimento Produtivo – PDP, o governo financiava a inovação como cliente e não como agência de fomento. Uma dezena de medicamentos biológicos tiveram o seu ciclo de produção dominado por startups brasileiras, como a Hygea, que jamais teriam conseguido investimento de capital privado para esse desenvolvimento se não tivessem contratos de compra futura assinados pelo Ministério da Saúde. É lamentável que as PdP estejam suspensas.
A contra-prova tecnológica
Mas não era a disciplina, o dinheiro ou motivação militar que garantia o sucesso da investigação científica. Era a contraprova da aplicação tecnológica. Sarewitz sugere que a tecnologia era uma forma de medir o progresso (ou a eficiência, ou eficácia) da ciência:
Science has been such a wildly successful endeavor over the past two hundred years in large part because technology blazed a path for it to follow. Not only have new technologies created new worlds, new phenomena, and new questions for science to explore, but technological performance has provided a continuous, unambiguous demonstration of the validity of the science being done. The electronics industry and semiconductor physics progressed hand-in-hand not because scientists, working “in the manner dictated by their curiosity for exploration of the unknown,” kept lobbying new discoveries over the lab walls that then allowed transistor technology to advance, but because the quest to improve technological performance constantly raised new scientific questions and demanded advances in our understanding of the behavior of electrons in different types of materials.
E ele vai mais longe: sem a tecnologia, não há como medir o avanço da ciência:
Technology is what links science to human experience; it is what makes science real for us. A light switch, a jet aircraft, or a measles vaccine, these are cause-and-effect machines that turn phenomena that can be described by science—the flow of electrons, the movement of air molecules, the stimu- lation of antibodies—into reliable outcomes: the light goes on, the jet flies, the child becomes immune. The scientific phenomena must be real or the technologies would not work.
Na verdade, sem a tecnologia para medir o avanço da ciência, ela fica à deriva à mercê dos caprichos dos pesquisadores:
The professional incentives for academic scientists to assert their elite status are perverse and crazy, and promotion and tenure decisions focus above all on how many research dollars you bring in, how many articles you get published, and how often those articles are cited in other articles. […] Universities—competing desperately for top faculty, the best graduate students, and government research funds—hype for the news media the results coming out of their laboratories, encouraging a culture in which every scientist claims to be doing path-breaking work that will solve some urgent social problem. […] The scientific publishing industry exists not to disseminate valuable information but to allow the ever-increasing number of researchers to publish more papers—now on the order of a couple million peer-reviewed articles per year—so that they can advance professionally. […] Bias is an inescapable attribute of human intellectual endeavor, and it creeps into science in many different ways, from bad statistical practices to poor experimental or model design to mere wishful thinking. If biases are random then they should more or less balance each other out through multiple studies. But as numerous close observers of the scientific literature have shown, there are powerful sources of bias that push in one direction: come up with a positive result, show something new, different, eye-catching, transformational, something that announces you as part of the elite. […] A survey of more than 1,500 scientists published by Nature in May 2016 shows that 80 percent or more believe that scientific practice is being undermined by such factors as “selective reporting” of data, publication pressure, poor statistical analysis, insufficient attention to replication, and inadequate peer review.
A consequência disso, é ciência de má qualidade:
The number of retracted scientific publications rose tenfold during the first decade of this century, […] poor quality, unreliable, useless, or invalid science may in fact be the norm in some fields, and the number of scientifically suspect or worthless publications may well be counted in the hundreds of thousands annually. […] Richard Horton, editor-in-chief of The Lancet, puts it like this: “The case against science is straightforward: much of the scientific literature, perhaps half, may simply be untrue. Afflicted by studies with small sample sizes, tiny effects, invalid exploratory analyses, and flagrant conflicts of interest, together with an obsession for pursuing fashionable trends of dubious importance, science has taken a turn towards darkness. […] an economic analysis published in June 2015 estimates that $28 billion per year is wasted on biomedical research that is unreproducible. Science isn’t self-correcting; it’s self-destructing.
Na verdade, nem todos os fenômenos são passíveis de conclusões científicas da mesma maneira. Alguns são mais dependentes do contexto do que outros e isso pode impactar tanto um experimento ao ponto de torná-lo impossível de executar com os controles adequados. Nesses casos, é muito importante restringir ao máximo o contexto do fenômeno que está sendo observado/experimentado para que possamos concluir alguma coisa legitimamente. É o que o físico Alvin Weinberg chamou em um artigo de 1972 (Science and Trans-Science) de transciência:
Weinberg observed that society would increasingly be calling upon science to understand and address the complex problems of modernity—many of which, of course, could be traced back to science and technology. But he accompanied this recognition with a much deeper and more powerful insight: that such problems “hang on the answers to questions that can be asked of science and yet which cannot be answered by science.” He called research into such questions “trans-science.” If traditional sciences aim for precise and reliable knowledge about natural phenomena, trans-science pursues realities that are contingent or in flux. The objects and phenomena studied by trans-science—populations, economies, engineered systems—depend on many different things, including the particular conditions under which they are studied at a given time and place, and the choices that researchers make about how to define and study them. This means that the objects and phenomena studied by trans-science are never absolute but instead are variable, imprecise, uncertain—and thus always potentially subject to interpretation and debate. By contrast, Weinberg argues, natural sciences such as physics and chemistry study objects that can be characterized by a small number of measurable variables. […] This combination of predictable behavior and invariant fundamental attributes is what makes the physical sciences so valuable in contributing to technological advance—the electron, the photon, the chemical reaction, the crystalline structure, when confined to the controlled environment of the laboratory or the engineered design of a technology, behaves as it is supposed to behave pretty much all the time.
Ele teme que o poder preditivo que a ciência tem para algumas disciplinas possa simplesmente não existir para outras:
But many other branches of science study things that cannot be unambiguously characterized and that may not behave predictably even under controlled conditions—things like a cell or a brain, or a particular site in the brain, or a tumor, or a psychological condition. Or a species of bird. Or a toxic waste dump. Or a classroom. Or “the economy.” Or the earth’s climate. Such things may differ from one day to the next, from one place or one person to another. Their behavior cannot be described and predicted by the sorts of general laws that physicists and chemists call upon, since their characteristics are not invariable but rather depend on the context in which they are studied and the way they are defined. Of course scientists work hard to come up with useful ways to characterize the things they study, like using the notion of a species to classify biologically distinct entities, or GDP to define the scale of a nation’s economy, or IQ to measure a person’s intelligence, or biodiversity to assess the health of an ecosystem, or global average atmospheric temperature to assess climate change. Or they use statistics to characterize the behavior of a heterogeneous class of things, for example the rate of accidents of drivers of a certain age, or the incidence of a certain kind of cancer in people with a certain occupation, or the likelihood of a certain type of tumor to metastasize in a mouse or a person. But these ways of naming and describing objects and phenomena always come with a cost—the cost of being at best only an approximation of the complex reality. Thus scientists can breed a strain of mouse that tends to display loss of cognitive function with aging, and the similarities between different mice of that strain may approximate the kind of homogeneity possessed by the objects studied by physics and chemistry. This makes the mouse a useful subject for research. But we must bear the cost of that usefulness: the connection between the phenomena studied in that mouse strain and the more complex phenomena of human diseases, such as Alzheimer’s, is tenuous—or even, as Susan Fitzpatrick worries, nonexistent.
A solução para Weinberg não parece viável nem mesmo para ele: cientistas desenvolverem uma honestidade altruísta, reconhecendo os limites das suas pesquisas e conclusões.
To ensure that science does not become completely infected with bias and personal opinion, Weinberg recognized that it would be essential for scientists to “establish what the limits of scientific fact really are, where science ends and trans-science begins.” But doing so would require “the kind of selfless honesty which a scientist or engineer with a position or status to maintain finds hard to exercise.” Moreover, this is “not at all easy since experts will often disagree as to the extent and reliability of their expertise.”
Por isso a tecnologia precisa voltar a ter o papel de validadora da ciência, para que não precisemos confiar na honestidade altruísta dos cientistas.
[If you fund] scientists and left them alone to do their work, [you’d] end up with a lot of useless knowledge and a lot of unsolved problems.
The current dominant paradigm will continue to crumble under the weight of its own contradictions, but it will also continue to hog most of the resources and insist on its elevated social and political status.
In the absence of a technological application that can select for useful truths that work in the real world of light switches, vaccines, and aircraft, there is often no “right” way to discriminate among or organize the mass of truths scientists create.
“Have no constituency in the research community, have it only in the end-user community.” if your constituency is society, not scientists, then the choice of what data and knowledge you need has to be informed by the real-world context of the problem to be solved.
O complexo industrial da inovação
Minha leitura do artigo, é que a ciência precisa ser mais empreendedora e operar por mecanismos mais similares ao empreendedorismo: amor ao problema e não a sua solução ou a área de atuação:
In the future, the most valuable science institutions will be closely linked to the people and places whose urgent problems need to be solved; they will cultivate strong lines of accountability to those for whom solutions are important; they will incentivize scientists to care about the problems more than the production of knowledge. They will link research agendas to the quest for improved solutions—often technological ones—rather than to understanding for its own sake. The science they produce will be of higher quality, because it will have to be.
É preciso criar novos incentivos, um complexo industrial da inovação no qual as partes estejam incentivadas a resolver os problemas da sociedade e que prestem contas dos recursos investidos na solução desses problemas, não a si mesma, mas, pelo menos, uma à outra. O Brasil tem tudo para lançar ou deslanchar nesse novo modelo. Temos leis de incentivo e uma indústria forte que fornece os recursos para a pesquisa e desenvolvimento. Com o final do contingenciamento dos recursos do FNDCT, não deveríamos mais ter problemas de recursos para o financiamento da pesquisa e desenvolvimento. Temos uma base sólida de cientistas e boa infraestrutura para pesquisa, ainda que com muitos problemas de fornecimento e gestão de suprimentos. Talvez nosso maior problema seja a desconfiança, mas hoje sabemos que, com incentivos bem distribuídos, podemos nos relacionar sem a necessidade de confiança.
Ainda que esse complexo industrial da inovação não exista, na Bio Bureau trabalhamos como se ele existisse. Propomos projetos de pesquisa apoiados por um roadmap claro do desenvolvimento tecnológico. Utilizamos metodologia ágil na gestão para rever a contribuição dos resultados preliminares ao nosso objetivo final e priorizar aqueles experimentos que agregam mais valor ao produto. Apenas participamos de projetos nos quais possamos ter parte da propriedade intelectual e direitos de participação no negócio, o que nos incentiva a criar coisas que funcionem e não que apenas geram publicações.
Publicamos nossos achados livremente, para que outros pesquisadores trabalhem com nossos modelos biológicos e contribuam para o avanço do entendimento dos problemas que precisamos resolver de forma independente. Buscamos clientes ‘beta’, que estejam dispostos a adquirir protótipos (ainda que limitados) ao invés de apenas contratar projetos de desenvolvimento. Facilitamos o licenciamento de tecnologia que desenvolvemos mas não temos interesse de comercializar (por não ser parte do problema) porque temos interesse que todo o complexo industrial floresça.